Vagueios indiscretos não guardados em mim

sábado, 16 de janeiro de 2016

Maria.

A notícia da tua morte caiu-me que nem um murro no estômago, uma punhalada no pescoço, um rasgar do meu peito. O meu coração chorou antes dos meus olhos.
Tinha acontecido.
A forma como nunca tinha verbalizado esse pensamento, nem mesmo na minha mente, mas a maneira como o meu subconsciente já sabia. Desde sempre.
Tinha acontecido. Concretizou-se. E soube que, enquanto eu chorava, tu estavas adormecida em cetim e rosas brancas. De olhos fechados. Tranquila.
Eras tu na fotografia. O texto dizia que tinhas ido. Foi assim que soube.
Demorou. O choque susteve longas lágrimas. Fiz uma chamada que me pareceu tão longa e tão rápida. Sei que foram segundos, mas a confirmação demorou horas a ser ouvida. Mesmo sem palavras.
Fiquei sem chão. A madeira de minha casa não aguentava o meu peso, mas sinto que fui a voar procurar o colo da minha mãe. Um colo que queria ter-te dado. Que sabia que todos queríamos ter-te dado mas que nunca conseguimos realmente.
Chorei desesperadamente e sabia que nada disso te podia trazer de volta. Nada te podia fazer dar uma nova oportunidade à vida. À tua vida.
Acho que quando choramos por este tipo de coisas a pergunta que ecoa na nossa cabeça é “Porquê?”. Uma pergunta desesperada à procura de uma resposta desesperadamente. Mas, de alguma forma, eu já sabia. Maria, eu sabia a resposta ao Porquê. Eu sabia, ainda que não a soubesse explicar. Nem eu sabia, nem tu. Já não havia palavras para responder. E foi por isso que o fizeste. Também já não havia razões para responder. O que nunca tinhas feito, fizeste-o de vez.
Eu chorava e não sabia bem o que pensar mais. Então, aprendi alguma coisa contigo, e tentei não pensar mais. Pensei em ti. Nos teus olhos atentos. Nas tuas sobrancelhas. Na tua altura. Na cor da tua pele.
Tantas vezes te vi dormir.
E agora dormes de vez. Para a eternidade.
Enquanto imaginamos acaba por ser fácil. Eras tu, a dormir. É uma ideia simples de aceitar.
Quando vi a caixa em que te tinham metido, pensei demais. Fecharam-na, Maria. Fecharam-na uma vez longe dos meus olhos e não a abriram mais. Mas eu sabia que era tu lá dentro. Eu sabia que os teus pés haviam de estar a tocar num dos lados e que a tua cabeça estava encostada à outra ponta. Era a tua altura. A caixa estava fechada e tu cabias perfeitamente bem lá dentro.
Queria agora ter pensado no aconchego que o teu corpo sentia ali. Mas não. Pensei no teu corpo. E chorei. Doeu tanto. A imaginação era demasiado real. Chorei mais. Doeu mais. Doeu-nos mais a todos quando voltei a chorar.
Até hoje é uma ferida que não sara. Mas eu aprendi contigo, Maria. Eu aprendi contigo. Ainda choro, mas não dói tanto. É libertador. Não é um choro que doa. É um choro que liberta. Sinto a alma mais leve e fico mais descansada. Imagino que tenha sido o que sentiste também.
Como é que é morrer, Maria? É assim? Se morreste assim, eu estou certa e tu estás feliz. Eu acho que foi assim que morreste. Mas nunca o disse a ninguém. Só a ti.
No dia em que vimos a tua caixa desaparecer na terra, fumámos todos um cigarro. Por ti. Que coisa tão estúpida diriam. Não é verdade. Fumámos um cigarro por ti e o fumo era mais leve. Não arranhou gargantas nem encheu os pulmões de fumo preto. Eu sei que não, porque não senti assim. Tu também não sentiste.
Foste tão inteligente, Maria.
Há quem me queira bater se disser isto sobre a forma como escolheste morrer. Mas é verdade. Morreste. Estás morta. Porque foste inteligente.
Explico-me.
Quando alguém se mata, há dois porquês. Porque é que se matou e Porque é que morreu. E tu morreste porque deixaste de respirar. Porque soubeste como fazê-lo.
Disse isto enquanto fumámos o cigarro. Conseguimos rir sem nos entalarmos com o fumo. Acho que é um bom sinal de que podíamos rir por ti. Podemos não podemos?
Nós sabíamos que estavas em paz. E em amor. Pelo menos o nosso.
O nosso amor, que não foi o suficiente para te agarrar à vida. Acho que a parte da culpa já passou. Na verdade, não sei se chegou a surgir explicitamente nas nossas cabeças, porque o coração não deixou. Talvez porque todos sabíamos a resposta ao Porquê que todos chorámos. Mas desculpa na mesma Maria.
Enterrámos-te com cigarros e rosas brancas. Aproveitámos o pôr-do-sol desse dia. Passei a ouvir-te mais depois disso. Percebi o que me tinhas ensinado, por muito poucas palavras ditas que nos tenham parecido lições.
Tu és a Maria. Serás sempre.
És a Maria e estás a dormir. Vejo os teus olhos fechados, por baixo dos arcos que fazem as tuas sobrancelhas. Os teus gigantes lábios estão perfeitamente alinhados. Não tens rugas na testa. Aliás, não tens rugas em ponto nenhum do teu rosto. Estás a dormir. Descansada. Relaxada. Pacífica.
Quem te vê não são os meus olhos. E esta imagem não vem da minha memória, digam o que disserem os estudiosos da matéria. Não. Todo o meu corpo te vê. Da cabeça aos pés.

És a Maria, estás a dormir, tens os olhos fechados, por baixo dos arcos que fazem as tuas sobrancelhas. Os teus lábios enormes também estão fechados. Não tens rugas, não tens preocupações e não tens incertezas. Porque estás a dormir. Descansada. Relaxada. Pacífica.

domingo, 27 de abril de 2014

Meu Amor. Meu. E Amor.

Meu Amor. Sim, Meu Amor.
Meu Amor, revi isto na minha cabeça mais de mil vezes nos últimos dias e já não sei por onde começar.
Meu Amor, obrigada. Obrigada porque a única certeza que tenho quanto a isto é a de chamar-te Meu Amor. Meu. E Amor.
Meu Amor, foram já os meses que passei sem ti. Foram meses de viagem interior, de completa alegria (não me interpretes mal), de novas experiências. Experimentei, por exemplo, estar sozinha. Não te ter. E digo-te que ser Minha e só Minha me preencheu mais do que alguma vez me preencheu ser Tua e só Tua (não me interpretes mal). Devo pedir-te desculpa porque sempre fui dona do Meu nariz e precisei de pôr termo ao que era Nosso para poder, de facto, senti-lo na pele, debaixo da pele, a correr-me no sangue, a preencher-me. E agora? O facto de me apetecer chorar mais do que alguma vez me apeteceu desde que deixámos de ser Nossos assumidamente enquanto escrevo isto, Meu Amor, faz-me duvidar do que o futuro será (não me interpretes mal). Peço-te que não me interpretes mal porque nem eu me sei interpretar. E devia. Porque sou Minha e só Minha e mesmo assim não consigo fazê-lo.
Meu Amor, na verdade, só tu sabes o que é que eu quero neste mundo. Só tu é que percebes a minha confusão constante, a minha insatisfação constante, a minha revolta (ultimamente in)constante. E és, sem sombra de dúvida, Meu Amor, quem melhor consegue lidar comigo.
Meu Amor? Desculpa. E sei, por seres o Meu Amor, que não é isto que queres ouvir. Ou talvez seja. Na verdade, não sei. Porque tu és o Meu Amor, mas eu já não sou o Teu Amor. Porque eu agora sou Minha e só Minha e, por favor, não me interpretes mal, porque nem eu me sei interpretar. E devia. Porque sou Minha e só Minha e mesmo assim nao consigo fazê-lo. Desculpa precisamente por isso. Por seres o Meu. Por seres o Amor. E por eu ter o egoísmo de não ser o Teu, nem o Amor.
Meu Amor, eu sinto que não to dei. O Amor. E desculpa por fazê-lo escorrer agora pela minha cara, em gotas tão grandes, tão bonitas e tão tristes, Meu Amor, aquelas que só tu, até hoje, compreendeste e Amaste, sabendo que eram grandes e tristes e, mesmo assim, tão bonitas para ti.
Meu Amor, obrigada por Amares o Meu egoísmo, a Minha tristeza, a Minha agonia, a Minha nostalgia, a Minha melancolia, o Meu vício por estas matérias. Principlamente, Meu Amor, sim, por Amares o Meu Vício nestas matérias. 
Meu Amor, está a doer. E desculpa por estar a doer tanto. Não devia. Porque sou Minha e só Minha e era assim que devia ser. Dói. Não arde. Não arde porque as lágrimas são grandes, tristes, mas bonitas e escorregam, Meu Amor, por esta cara que sabes de cor e que, por ter sido Tua, um dia, foi apenas Amada e Amada. Não arde porque o Amor que não te dei, guardei-o e desculpa estar a deixá-lO fugir agora por entre estas pestanas que tu tão bem conheces. 
Obrigada, Meu Amor, por me teres Amado tanto, e por me fazeres doer agora, Meu Amor, que fui e não voltei, que vim e não voltei, e que quero tanto voltar (não me interpretes mal). Peço-te que não me interpretes mal porque nem eu me sei interpretar. E devia. Porque sou Minha e só Minha e mesmo assim não consigo fazê-lo.

segunda-feira, 31 de março de 2014

tenho demasiado de ti em mim. tenho o teu cheiro. e só isso já é demais.
O silêncio da noite mostra-nos os mais escondidos recantos da rua e a escuridão noturna faz-nos ouvir os mais estranhos sons que voam no ar. Ou em mim... Passa pouco das quatro da manhã e está um gelo. Chuvisca, daquela maneira que não molha, mas aborrece. No entanto, nem reparei. Entre os estranhos sons que por aí dançam, está também a voz da minha consciência. Sinto-me mais vazia do que nunca, mais frágil. Mal posso esperar por chegar à minha cama.
e ao som dos primeiros acordes da música, tentei escrever o que sentia. este tão estranho e nojento sentimento. engraçado como, com o som forte da guitarra e do baixo, com a letra sabida de cor, deixo escapar uma expressão de desprezo, ainda que, por outro lado, me estejam a cantar ao ouvido completamente o contrário.
ultimamente tem sido assim, ou ouço música tão alto que me impeça de pensar, ou vejo filmes silenciosos, sem ação, que criem em mim qualquer outro sentimento. e tudo para te fugir.  só sei de algo que não faço: ler o que, em segredo, te escrevi no caderno branco que tenho escondido no meio da minha e só minha confusão. essa confusão que tu chegaste a conhecer tão bem.
acho que faço isso com todos os que, de algum modo, acabam por ficar com um pé dentro e outro fora da minha vida. esses indecisos que não sabem lidar com a tempestade que sou, mas que a adoram. ou essas tempestades que pensam que a verdadeira catástrofe sou eu, mas que, mesmo assim, me adoram. esses que me adoram tanto que me deixam sozinha, um tufão abandonado, um tsunami pela noite dentro, um nevão gelado pela manhã. fecho-os no caderno e não volto a olha-los. mas vejo-os. vejo-os todos os dias, mentalmente, toda a caligrafia, toda a tinta que deixei escapar da esferográfica quando acordava de madrugada com a febre de escrever-lhes(/escrevê-los?....). não sei quantos de vós inventei. não sei quais inventei. não sei quais são a mistura da minha imaginação, da minha melancolia, com a realidade. 

não sei de nenhum.                                                  não sei de mim.                                           sei só de ti.

e não quero saber. quero reagir contigo como reages comigo. e, quando tento, cresce-me uma acidez no estômago, sinto o ar dentro dos meus pulmões pesado, sinto os ombros serem empurrados para baixo com a maior das forças. um desconforto da cabeça aos pés. um aviso do meu corpo: tu não consegues.
então fico passiva, de parte, a olhar-te ao longe, a sorrir as mais pequenas coisas, à espera que alguma coisa te leve daqui. te leve para longe. à espera que algo apague tudo o que é teu. tu, as tuas marcas, a minha memória de ti, acima de tudo, a minha memória de ti.
já a tua memória de mim, espero que moa, mas não mate. espero que te faça ser tudo o que nunca quiseste ser. que te faça ser tudo o que não gostas de ser. e espero que te divirtas. fizeste crescer em mim o maior dos ódios, o maior dos nojos, o pior dos amores... mas fizeste-me viver. pelo menos por isso, obrigada.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

passam anos e anos, bem passados, mal dormidos. até que o bicho começa a comer-te por dentro. e rói toda a réstia do nada que já não doía. e leva tudo quanto encontra. deixa-te só. e não só. deixa-te só e incompleta.
dá dois passos atrás e livra-te dele. encontra-te. procura em ti o maior amor do mundo e guarda-o. guarda-o bem e só pra ti. afinal, o maior amor da tua vida és tu.

domingo, 28 de julho de 2013

Circunstancialmente capaz.

Bebeu mais um golo da sua chávena de café. Continuou a sua longa viagem mental por lado nenhum enquanto observava paisagem nenhuma num tão belo sítio. Sorriu. A fraquíssima penugem loira que tinha agora por todo o corpo eriçou-se. Sorriu mais vincadamente. Uma ventania pequena de inspiração tinha-a arrepiado. Alimentara-se já suficiente da tristeza e depressão do mundo à sua volta descrito: nas árvores, nas flores mortas, nas peças de roupa a sombra, nos livros e nas suas histórias, na sua própria tristeza, confusão e dor. Era a sua carteira de infelicidade que sempre transportava consigo, desde que racionalizasse a sua dor. Sorriu novamente. Foi um sorriso arrogante. Sorria por ser viciada numa droga chamada tristeza. Melancolia. Talvez errasse propositadamente para sentir o prazer de encontrar felicidade junto de tudo o que lhe merecia atenção, buscando, ao mesmo tempo, tristeza e mágoa junto de tudo o que a desprezava e lhe fazia doer o peito. Sim. Estava bem agora. Bastava entrar em casa para se sentir confortável e feliz. Bastava puxar memórias que só ela guardava para se sentir desprezível, nojenta, parva. Tinha o clímax da depressão e da alegria consigo. Assim, sim. Tinha tudo reunido para voltar a viver sendo ela mesma. Para poder voltar a conviver consigo, com o passado que não queria deixar e o futuro por que tanto ansiava. O ambiente era perfeito. Pegou na caneta e abriu o caderno velho.