Vagueios indiscretos não guardados em mim

domingo, 19 de junho de 2011

auto-retrato.

-Toma, aqui. - e apontei para o papel branco que acabara de pousar em cima da mesa- o teu retrato, como quiseres.
-Não sei desenhar.
-Escreve, então.
A rapariga pegou no lápis, no mais leve de todos, e escreveu, desenhou, sarrabiscou, virou o papel ao contrário, continuou. Olhei, estava tudo apenas cinzento, um cinzento claro. Para mim, estava tudo com um nevoeiro que apagava toda a cor já desenhada por ela atrás daquilo. Pegou no mais escuro, começou a escrever. Escreveu, escrevia, deixava espaços que depois preenchia, tudo a negro.
A sua expressão ia sendo dura, rígida, de repente ficava triste, cansada. a testa franzia, a boca descaía, piscava lentamente os olhos, sorriu e começou a chorar. a folha acabou, e o lápis partiu.
Rasguei a folha quando acabou.
-Desenha o que queres ser.
-Já disse que não sei desenhar.
-Sabes que não é por mim, é por ti.
Nova folha, limpa, vazia. Entregou-ma tal e qual.
-OK, é isto que queres ser?
-É. Nada. É mesmo isso. Um vazio.
Contei. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis. Sete palavras que tinha acabado de dizer. Falava muito, como nunca tinha falado, dizendo algo sobre tão pouco, que quisesse dizer tanto.
-Pronto, se não queres ser nada, podes reduzir-te a uma insignificância só tua, desaparecer, ficar cada vez mais apagada. Tens pessoas que gostam de ti, achas que consegues apagar-te?
-No mundo há sempre alguém que gosta de nós. E apesar disso, não há tanta gente assim?
-Há, e tu queres ser igual aos outros?
Pegou no papel e desenhou uma linha recta.
-Quero ser assim, não igual a todos, mas igual a tantos outros. Plenitude. É isso. Preciso de ir, adeus.
E saiu, como se não me tivesse dito nada ainda, como se fosse apenas uma conversa rápida, simples, daquelas que todos temos em cinco minutos das nossas vidas.
Fiquei no meu sitio, apanhei os papéis rasgados. Li uma e outra linha. Chorei. Chorei até não poder mais. Doía-me tudo de o fazer, tremia, chorava, chorava mais. Sentia as lágrimas caírem-me da cara, saírem dos olhos, escorrerem pela cara, caírem pelo pescoço e secarem, uma e outra vez. Comia e chorava. Ainda mais. Sentei-me na janela, e olhei para o céu, chorei mais e mais, e mais, até achar que era impossível chorar mais. Não era. Passado um tempo, chorava de novo, doía-me a barriga, doía-me o corpo, a garganta, doía-me a alma porque já nada mais havia pra chorar. Mas continuavam a vir soluços, com lágrimas misturadas, uma dor no peito que aparecia e desaparecia, e uma vontade de chorar ainda mais sufocada, soluçando alto e bom som como me apetecia. Como é que estava? Vazia. Estava tal e qual uma folha branca. Mas a minha vida estava um caos, com um nevoeiro claro por cima das histórias felizes que passaram, com apontamentos a escuro de tudo o que me confundia e pesava em mim. E pior de tudo? Estava rasgada. Olhei para o mar, a linha do horizonte, onde não há ondas, nem parece chover, onde tudo é tranquilo. Uma linha recta no meio de uma folha. Era onde queria chegar.
Peguei no telefone e liguei, ninguém me atendeu. Havia algo que não ia resolver-se naquela noite. Fiquei a falar sozinha, praticamente, fui pensando em tudo. No fim, desliguei-me, fechei a janela. Fui dormir, descansar a alma que tanto tinha andado adormecida e que de repente acordara tão revoltada e atravessado uma tempestade tão violenta.
No dia seguinte estava tudo bem, tinha-me esquecido da chamada perdida, a rapariga não voltara, mas havia tido uma visita à hora de almoço. Uma mensagem, pouco preocupada, provavelmente a perguntar o que se passava por mera rotina. A curta conversa foi então interrompida pelo almoço a duas, e esse almoço foi subitamente interrompido por uma visita que alinhou tudo numa só linha, uma visita que me encheu o peito de novo, encheu-me de esperança e de motivos para não chorar. Foi-se embora e sorri o resto da tarde.
(...) Ia lá eu adivinhar que a rapariga me ia visitando de quando em quando, uns dias depois, várias vezes por semana, desaparecendo e aparecendo quando bem lhe apetece. A única diferença, é que agora sei que há alguém que me aparece quando combinado, que me deixa tranquila, quando a tempestade bate na porta.