Vagueios indiscretos não guardados em mim

domingo, 11 de março de 2012

sonhos derrubados, empurrões em forma de palavras. quase sinto a dor de cair, o desconforto que sentimos quando encontramos o chão de uma forma bruta da qual não estávamos à espera. e tudo isto com meia dúzia de palavras de alguém que em três anos desaparece para sempre da nossa vida. parece algo simples, mas não é. a meia dúzia de palavras repete-se por meia dúzia de dias, depois, por meia dúzia de semanas. já vamos em meia dúzia de meses e, acreditem ou não, não derramei só meia dúzia de lágrimas, nem chorei meia dúzia de vezes, nem pensei em desistir apenas outras tantas.
olho para a nossa volta. todos parecem aguentar o secundário, todos parecem ter todo o tipo de problemas, menos o nosso. todos parecem continuar a sonhar e a batalhar para chegar lá, e nós? nós batalhamos para que nos deixem ter um sonho. não vivi outras experiências, mas não me parece que isto seja o correto.
chego a casa e ninguém está ainda, o ambiente da minha casa, o ambiente do meu lar conforta-me, e choro. choro porque sei que aqui ninguém me vai julgar por chorar. penso em tudo o que ouvi e choro mais. e enquanto choro, penso no dia de amanhã, na aula de amanhã, e choro, choro ainda mais. choro até adormecer e volto a acordar, numa calma intacta, com uma cara sem expressão ou uma expressão sem cara, acordo conformada que o medo que tenho do que vou ouvir não vai ajudar em nada. acordo insensível, sem vontade de rir ou chorar mais. se por acaso a conversa ao jantar traz o assunto à minha mente, espero até chegar ao quarto para voltar a chorar. e no dia seguinte, quando acordo pela manhã, acordo logo com vontade de voltar a soltar o nó que, não sei como, ainda não desapareceu. e então, volto a chorar. volto a chorar, visto-me a chorar, paro para comer e saio de casa a correr, a chorar, mas o vento seca-me a cara, e então, quando entro no autocarro, já vou fria, congelada, com a música alta, a olhar para o infinito, sem força para voltar a chorar, mas com o medo presente dentro da minha cabeça. o medo de me zangar a sério, de me revoltar com o que ele me diz, com o medo de ouvir o que ele diz aos outros, de ouvir as acusações dele, de ouvir que a vida é feita apenas de frustrações, que a culpa de tudo é nossa, que a vida é um projeto falhado.
se calhar o medo que tenho é que ele esteja a contar-nos a verdade. mas eu nunca descobriria isso se ele não tivesse dito aquilo assim. eu depararia-me com as frustrações e daria a volta por algum lado, mas ia dar a volta e ia atrás de outros sonhos, de novas tentativas. mas ele já contou o fim, e não me deixou sequer pensar noutro sonho. é que, segundo ele, vamos sempre falhar. sempre. e só vamos falhar porque somos assim e assado, desta ou daquela maneira. porque ele é que não falhou, ele é que sofreu a sério, e nunca falhou, ele é que é. nós nada somos.
se calhar o que me apetecia era pegar num bonito texto, mostrando-lhe tudo o que vai cá dentro, e lê-lo no mesmo tom em que ele nos leu, outro dia, o incrível texto de mia couto, que criticava já não sei o quê, mas que me deixou tão revoltada por, mais uma vez, o professor estar a afirmar a sua razão e a gritar "vocês não conseguem, nunca vão conseguir" por palavras bonitas e floreadas com recursos estilísticos imensos, escritos por quem os sabe usar melhor.
ainda tenho a voz e o tom que escolheu para ler aquilo na minha cabeça, e fogo, continuo com uma vontade de chorar tão grande só por isso. só por não me poder revoltar, por não poder dizer o que aqui vai dentro. por saber que muitos outros, os vossos filhos, ainda choram, alguns até às escondidas, pela mesma razão que eu.
batemos no fundo quando alguém nos chama "desilusão", quando alguém não acredita em nós, quando, em simultâneo, nós não acreditamos em nós por coisas destas, quando deixamos de acreditar em nós mesmos.
digam-me agora, não o que vai ser feito desta geração que foi habituada a tudo, como criticava mia couto, mas sim o que vai ser feito de uma geração sem sonhos graças a pessoas como esta, que apenas estão connosco oito horas por semana. digam-me, expliquem, como querem um futuro para nós, quando tudo é que fazem é tirarem-nos o tapete a que nos agarramos? como é que esta pessoa quer que tenhamos sonhos se nada do que sonhamos lhe serve como resposta? se tudo o que dizemos gera desilusão nele, ou se tudo o que dizemos o faz arregaçar as mangas, pôr a sua cara de maior desprezo e o seu tom mais irónico e, mais uma vez, o faz atirar-nos ao chão, com aquelas palavras que só ele sabe e que nem nós conseguimos trazer todas para fora da sala? para que todos conheçam as duas partes, para que todos ouçam o que ele diz a alunos tão mal educados ou tão arrogantes, como ele diz que somos. ou melhor, queríamos trazer-vos o seu olhar de soslaio depois de falarmos e antes de se virar para o quadro e mudar de assunto.
queria trazer-vos eu própria as lágrimas que deixei cair ali na frente dele quando me disse que uma aluna como eu nunca devia ter entrado ali, que eu não ia ser ninguém na vida, que eu era isto e aquilo. e queria trazer-vos a minha reação quando o cenário se repetiu e eu fiquei simplesmente calada porque não conseguia voltar a ouvir aquilo. queria trazer-vos o ambiente que ficou entre as quatro paredes quando nos disse de forma subtil que ia continuar a ser nosso professor para o ano, quando nós só esperávamos ter de aguentar até ao final do 3º período. queria trazer-vos as próprias aulas, queria trazer-vos a revolta dentro de alguns de nós. mas em vez disso, trouxe-vos este texto. este texto coberto de lágrimas e suspiros tristes, fruto de tudo o que queria mostrar-vos e não posso.
e mentalmente vou lendo o que escrevo, imaginando-me a falar no tom dele, com a entoação que fez naquela terça feira, com a força de quem nunca chorou por isto, eu e os meus colegas comigo, aqueles que vi chorar de desespero porque não sabem mais o que fazer. nós, e ele, convosco a ouvir tudo. com ele a ouvir tudo. a ouvir como também nós estamos tristes por isto, como nós ficamos afetados com as coisas que ele nos diz, como nós ficamos ao saber que nada podemos fazer e sempre que abrimos a boca sobre isto e alguém simplesmente nos manda calar. quando o que queremos mais é sair daqui, dizer tudo o que pensamos e sair, mostrar tudo, dizer tudo sem ouvir uma palavra mais alta a meio, berrar, gritar, se calhar parar de falar e chorar um bocadinho pequeno para ter força para continuar. mas queriamos poder dizer o que pensamos, queiramos poder defender-nos e sentir algum apoio por parte da escola, por parte de quem, até agora, ouviu tudo o que ele dizia e nos mostrava a sua reprovação e desilusão. queríamos isso tudo, mas nada podemos. porque afinal, a vida é um projeto falhdo e uma sucessão de desilusões e frustrações, afinal, (e faço aqui uma pausa, tal e qual como ele fazia ao ler aquela crónica), afinal nós nem somos capazes. afinal,nós somos mimados, mal habituados, e ele é que sabe o que é sofrer.
e mais uma vez, sinto a dor de quem cai, sinto o desconforto depois do encontro com o chão, sinto dores nos ombros do empurrão que acabei de levar por palavras tão altas, tão frias, e tão intocáveis que ele acabou de dizer-nos.